segunda-feira, 19 de março de 2012

O Plano e o "Limbo"


Já fazia um ano que o projeto estava em execução. Já tinha sido interrompido uma vez. Deram um tempo para que o pessoal do desenvolvimento "ajeitasse a casa" e voltasse depois, com uma aplicação que pudesse passar pela área de teste de software sem muitos problemas. Teoricamente ela deveria estar estável (sim, porque na primeira entrega, estava um desastre, por isso o projeto foi interrompido). Mas, para a surpresa de todos, a aplicação parecia estar exatamente igual à época da parada total. O prazo já tinha sido esticado (coisa rara, mas dado o estado deplorável do código...), mas ainda assim não seria suficiente para que o produto fosse entregue a tempo e com qualidade. E o melhor de tudo é que os responsáveis pela condução do projeto, os "cabeças" da coisa toda, pareciam estar em outro mundo, como se tudo estivesse indo bem.

O projeto já começou errado. Desde sua concepção já se percebia que o escopo era grande demais para os recursos e o tempo disponíveis. Seguir os requisitos? Isso era comprar uma briga sem razão, coisa de rebelde sem causa. O pior é que ainda tinha mais coisa a ser pensada, mas que ninguém tinha percebido ainda: o futuro. Afinal, tratava-se de um projeto de reescrita de uma aplicação importante para a empresa. Algo que realmente influenciaria na produção e nas vendas. E, algo muito importante a ser considerado pelos tomadores de decisão, é que toda a decisão para o futuro é tomada no presente. Soa meio que filosófico, é extremamente importante para percebermos as consequências dos nossos atos. Mas, nesse caso, todo mundo até então só falava no que tinha acontecido e no que iria acontecer até instalarem a nova aplicação. A partir deste ponto, nada havia sido tratado. Ninguém sequer falou na "barriga" do projeto, tão comum, mas menosprezada até pela cartilha do PMI...

Essa é uma história que diz respeito a algo que muita gente vivencia diariamente nas empresas. Mas que raios é essa tal de "barriga"? Do que estou falando? Bem, acho que um exemplo certamente ficaria mais esclarecedor. Então vamos a ele.

Há uns anos, uma grande universidade brasileira resolveu que era hora de mudar seu ERP e adquirir uma solução mais moderna e integrada, que pudesse fornecer informações estratégicas em tempo real e facilitar a comunicação e a tomada de decisões entre as unidades de ensino da instituição. O investimento estava estimado em R$ 15 milhões, aproximadamente. Até então, a universidade utilizava muita coisa desenvolvida internamente em seus laboratórios, algo não muito sofisticado, mas que funcionava bem e que todo mundo conhecia. Mas aí veio a "necessidade" de se adquirir um ERP de verdade, afinal, todo mundo tinha um.

A exemplo do primeiro caso, ignorou-se a "barriga do projeto" (nome dado por um professor dos tempos de faculdade). Na maioria das vezes, os projetos são pensados e planejados como se tudo fosse correr como o previsto. Parece que, entre a aplicação ser implantada e estar funcionando 100% com todos os usuários treinados, o caminho é linear. Essa representação está na figura a seguir. Suponha que a aplicação seja implantada em módulos e que a fase 1 seja a implantação do primeiro (antes dela teve todo o trabalho de análise, programação, teste, etc.). Nessa fase é importante lembrar que, no momento em que a nova aplicação entrou no ar, a antiga foi descontinuada. Pois bem, logo a seguir, a fase 2 seria a implantação do segundo módulo, e assim por diante. Note que o caminho entre a fase 1 e a fase 2 parece ser algo linear, representado por uma reta, já previsto o treinamento dos usuários e o tempo de adaptação à nova ferramenta. Tudo muito bem planejado, aparentemente. Veja:




Aí é que entra a "barriga". Existe um período que ocorre durante a transição de uma ferramenta para outra que é uma espécie de "limbo", onde os usuários não têm mais as informações das quais dispunham na época da aplicação antiga, e também ainda não têm as novas informações geradas pela nova aplicação, pois ela ainda não foi completamente instalada. Em outras palavras, é um período em que os usuários simplesmente se veem sem informações suficientes para poderem tomar decisões. Esse período é representado pelo pontilhado azul e pela "barriga" da figura a seguir:




Como é possível perceber, a progressão do projeto não é mais uma reta, mas sim algo próximo a uma parábola. E, como a segunda figura mostra, acontece de forma não planejada. Note que os intervalos de tempo (que foram planejados) são os mesmos. O que mudou foi o comportamento da progressão das fases. Sabemos que, sempre que se mexe em um dos elementos do trinômio do projeto (escopo x tempo x recurso), os outros dois naturalmente precisam (ou deveriam) mudar. O que aconteceu nesse caso da universidade foi que o tempo (mal) planejado acabou não sendo cumprido como se esperava, pois a transição de fases utilizou mais tempo do que era previsto devido ao período em que os usuários ficaram no "limbo". E aí, automaticamente, os recursos (dinheiro a mais que foi gasto em treinamento, horas extras, etc.) e o escopo (simplificação de algumas rotinas) mudaram para que se pudesse cumprir o tempo até a implantação do segundo módulo.

Ao fazer o planejamento de um projeto desse tipo (reescrita de uma ferramenta importante), é preciso considerar não apenas a fase de adaptação, mas também a "barriga". As duas normalmente acontecem juntas. Descontinuar uma aplicação antiga logo após ter implementado uma nova também não é uma boa ideia. Certamente isso só aumenta o tamanho da "barriga". É muito importante que a aplicação antiga esteja rodando junto com a nova, pelo menos durante certo tempo, até que a adaptação e o aprendizado estejam concluídos de maneira satisfatória. E, em se tratando de projetos, vale lembrar que a maior surpresa é justamente não haver surpresas. Por isso, quanto mais variáveis forem consideradas no processo de planejamento, a menos surpresas o projeto estará sujeito ao seu final. Esse é o exemplo desta universidade. É algo já ocorrido. É passado. E pensar que o pessoal do projeto que falei no começo do post ainda nem tinha avançado o suficiente no cronograma para chegar a pensar nisso...
 


* Adaptação do texto escrito em 13/12/2007


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