quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Ao Mestre Com Carinho


Muito tem se falado em educação ultimamente, tanto na televisão quanto na internet. Parece que as pessoas estão acordando para um tema que realmente é importante para a sociedade e cuja precariedade começa a apresentar resultados, refletidos na quantidade de analfabetos funcionais, violência no trânsito, falta de conteúdo e simplificação dos programas de televisão e mídia impressa, etc. Aqui mesmo no RS a rede de comunicação local resolveu promover a campanha "a educação precisa de respostas", basicamente, procurando entender por que o Brasil é o sexto país em termos de economia no mundo e apenas o octogésimo oitavo no ranking de educação. Embora de propósito nobre, não sei qual vai ser o resultado prático de tal campanha midiática. Ao menos, serve como reflexão. Se bem que, se a população não está educada satisfatoriamente, será difícil que a massa entenda a mensagem e reflita sobre do tema. Mas acho que estão tentando fazer a parte deles. Se a educação fosse uma preocupação permanente dos meios de comunicação, provavelmente a influência que eles têm poderia colaborar no sentido de fazer as pessoas pensarem mais em vez de assistirem novelas. Por outro lado, se a TV está fazendo isso é porque talvez os governos, teoricamente os principais responsáveis, não estão cumprindo com seu papel principal de investir na educação do seu povo.

O tema é bastante complexo, sem dúvida. Mas sabe-se que é pela educação que as nações saem do fundo do poço e tornam-se prósperas de verdade. Esse deve ser o começo de tudo. Não deve ser a única forma de reerguer a economia, logicamente, mas há de ser uma das principais. Já mencionei aqui que, em minha opinião, o problema está na qualidade de ensino muito mais do que na estrutura das escolas públicas (que hoje recebem mais verbas do que no meu tempo). E falo com a propriedade de quem tem uma esposa professora dentro de casa. Além das baixas remunerações, percebe-se que muitos professores estão desmotivados, sem vontade de dar aula, sem alegria em ensinar. Alegria e entusiasmo são quase 70% de um indivíduo que leciona. Sem isso, ele não busca a excelência, não se atualiza. E a qualidade do ensino em geral cai. Se até este básico lhe falta, para onde vamos? Como se não fosse o bastante, este profissional precisa lidar com a nova geração de pais, que terceirizam a sua parte na educação dos filhos aos mestres e ainda responsabilizam estes pelas baixas notas obtidas por suas crias. Não é à toa que o número de jovens que gostaria de seguir carreira de professor é cada vez menor. 

Ser professor, mais que um trabalho, deve ser encarado como uma missão. E das mais nobres. Acho que se você não encarar um pouco por essa perspectiva, nem vale a pena tentar entrar nessa carreira. Lembro-me de um episódio dos meus tempos de estudante que relata bem isso. O ano era 1997 e eu estava no quarto e último ano do segundo grau técnico do curso de Processamento de Dados. Era um ano bastante movimentado para mim. Tinha acabado de conseguir meu primeiro emprego com carteira assinada (já havia começado a trabalhar dois anos antes, mas como estagiário) e tive de passar a estudar à noite, haja visto que também o quarto ano só era ministrado neste período. Além das aulas e do trabalho, era o ano da formatura. Eram duas turmas de quarto ano e eu era o líder das duas. Era uma responsabilidade grande, mas eu tinha orgulho daquilo. Não apenas por representar duas turmas ao mesmo tempo (a divisão era apenas física, visto que todos se conheciam dos anos anteriores), mas porque ali estavam apenas os melhores. 

Deixem-me fazer um parêntese para explicar: Naquela época, o Mascarenhas de Moraes, em Cachoeirinha-RS, era uma das escolas técnicas mais conceituadas do estado, mais que muitas escolas particulares. Além do primeiro grau, tinha quatro opções de cursos no segundo grau, sendo três deles profissionalizantes. A partir do segundo ano (o primeiro era básico para todo mundo), podia-se optar por um determinado caminho. Além do curso básico, chamado de "Geral" pelos alunos, e que tinha como foco maior a preparação para vestibulares, a escola oferecia os cursos de Secretariado (predominantemente de público feminino), Contabilidade e também o de Processamento de Dados. Este último, além de possuir um ano a mais que os outros, tinha aulas aos sábados e era preciso fazer um teste de aptidão e raciocínio para poder entrar, não bastava querer. E foi neste que eu me enfiei. Por isso trabalho com TI até hoje... O caso é que o curso era considerado extremamente difícil pelos alunos da escola. Era comum ver o pessoal comentando pelos corredores: - Tu vais fazer PD? Dizem  que é para louco, que os alunos se matam estudando, etc., etc. Bem, depois de tanto tempo, posso dizer que era difícil, sim, mas não tanto para quem já pretendia trabalhar com TI, como eu. Mas é fato que, dos cerca de 150 alunos que iniciaram o segundo ano (divididos em 3 turmas), apenas uns 20 conseguiram terminar o quarto ano. Um verdadeiro funil.

No meio de toda essa correria, eu ainda tinha de me preocupar com os estudos, obviamente. O curso exigia dois estágios: um externo (que eu estava cumprindo no meu primeiro emprego) e outro interno, que consistia em desenvolver um sistema e entregá-lo ao final do ano. Eu e mais duas colegas (minha prima era uma delas), desenvolvemos um sistema de gerenciamento de uma farmácia, em Clipper (!). Nunca foi utilizado na prática, mas funcionava a contento e serviu para nosso aprendizado e aprovação. 

Dentre as matérias regulares da grade curricular do quarto ano, estavam as de "Análise de Sistemas" e "Banco de Dados", ambas ministradas pelo mesmo professor. Ele, aliás, trabalhava como DBA num grande banco estatal e dava aulas à noite, como fazia a maioria dos professores do curso. Ou seja, o magistério não era sua principal atividade. Mesmo assim, suas aulas eram das melhores e ele era extremamente capacitado. Talvez isso fosse exatamente um dos diferenciais do curso. Como a maioria dos professores tinha sua própria empresa ou trabalhava em bons cargos na área de TI, isso potencializava a experiência e o aprendizado dos alunos. Esses caras faziam isso pela missão de ser professor, uma vez que sua remuneração nos locais onde trabalhavam durante o dia era claramente maior. É um tipo de compromisso que pouco se vê hoje em dia.

As provas das duas matérias supracitadas costumavam ser bem difíceis, como não podiam deixar de ser, dada a relevância dos conteúdos. O professor era extremamente exigente também. Posso dizer que aprendi muito com as aulas dele, mas a sua principal lição não foi técnica, mas de caráter, daquelas que você nunca mais esquece. 

Naquele ano, além das mudanças na LDB (Lei de Diretrizes e Bases), que versaram sobre o valor médio da nota para aprovação, formatos de recuperação, etc., a escola também precisaria mexer na grade curricular para o ano seguinte. Com isso, as duas disciplinas mencionadas se converteriam em uma só, mas com igual carga horária. Na prática, mudava pouca coisa. Só que havia um componente crucial: como as duas matérias deixariam de existir, o aluno que fosse reprovado em apenas uma delas, por exemplo, não teria como cursá-la de novo no próximo ano, nem por dependência. E também não poderia cursar a disciplina unificada, pois estaria repetindo uma das matérias na qual havia sido aprovado no ano anterior. Certamente isso traria muitos problemas. O professor, que sabia disso previamente, manteve o ritmo das aulas como se nada estivesse acontecendo, sem revelar nada aos alunos. Estávamos tendo as mesmas aulas difíceis que todas as turmas anteriores haviam tido, sem nem imaginar que tais mudanças estavam a caminho. Eis que, em uma das últimas aulas do ano, ele chega para a turma e diz: - Pessoal, por conta dessas mudanças na lei e na grade curricular, não irei reprovar ninguém nessas duas matérias. Estão todos aprovados.

Naquele momento eu fiquei meio tonto. Não entendi porque ele não havia contado nada para a turma logo que soube. Depois, entendi tudo. Se ele tivesse contado no começo do ano que ninguém iria ser reprovado, certamente o grau de comprometimento da turma iria ser muito menor. O interesse nos conteúdos, idem. Haveria faltas em massa, ninguém faria as provas, mas, principalmente, ninguém aprenderia coisa alguma. Ele poderia simplesmente ter cancelado as aulas quando soube das mudanças, mas preferiu continuar vindo de outra cidade quase todas as noites para dar uma aula que não iria reprovar ninguém. Preferiu continuar as aulas como sempre foram, com o mesmo grau de exigência, e com a mesma dedicação. Naquele momento eu percebi  o quanto um professor, ainda que não fosse de carreira, poderia demonstrar o quanto estava comprometido com o aprendizado dos seus alunos. 

Sei que é complicado exigir o mesmo comprometimento de alguém que é mal remunerado e que só tem o magistério como fonte de renda (professores de carreira em geral). Porém, igualmente importante é ressaltar que o comprometimento com a educação também se dá por outros motivos, como este que relatei. Este episódio me inspirou, de certa forma, a acreditar nas pessoas com quem trabalho e a procurar não desistir delas, mesmo quando as coisas não vão bem. Assim como o meu professor, muitas vezes os líderes de equipe lidam com informações que não podem compartilhar num primeiro momento, mas que serão importantes mais adiante. O que faz a diferença é você jogar a favor do grupo. E é isso que eu tento fazer no meu dia-a-dia no trabalho, muito por causa daquela atitude me mostrou que sempre vale a pena tentar.

Obrigado, professor!


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